Mulheres do Parque

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Helena, fale-nos um pouco de si.
Sou residente no Parque das Nações, casada, tenho dois filhos, de 38 e 35 anos, sou Professora Catedrática no Departamento de História da FCSH-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e sou egiptóloga. Atualmente sou a Coordenadora Executiva do Departamento de História e coordeno, ainda, o Mestrado de Egiptologia.

Foi a primeira egiptóloga portuguesa?
É verdade! Dirigi, durante dez anos, a primeira e única concessão arqueológica portuguesa no Egipto (“Palácio de Apriés”, em Mênfis).

E divide a sua atividade entre a investigação e as aulas…
Gosto muito da minha atividade de investigação – no terreno ou nas bibliotecas – que se traduz em livros, artigos e comunicações ou conferências no estrangeiro, mas adoro dar aulas… por razões distintas. A primeira prende-se com o facto de eu gostar muito de falar da civilização egípcia. De dá-la a conhecer nas suas diferentes vertentes. É tão pouco conhecido o Egipto Antigo… E a segunda tem a ver com a circunstância de eu adorar o contacto com os meus alunos. Crescemos e aprendemos juntos… São os meus “meninos”…

Tem vários livros publicados e um grande gosto pela leitura…
Não seria capaz de viver sem livros… Gosto de cinema e de música, mas no Egipto não tenho televisão nem vejo filmes e quase não ouço música – gosto da melodia do deserto – e vivo perfeitamente. Mas levo muitos livros. Os livros foram os meus companheiros de aventura, os meus “irmãos”, quando eu era menina, filha única, e vivia sozinha com os meus pais. Foram os livros que me deram a conhecer o mundo, fechada entre quatro paredes. Devo tudo o que sou, aos muitos livros que li até hoje!…

E de pessoas?
Gosto de pessoas, mas cada vez aprecio mais a solidão… Prefiro-a a “más companhias”… e “más companhias”, para mim, são pessoas negativas, invejosas, maldizentes, que estão sempre contra o mundo e contra todos. Afasto-me deste tipo de pessoas.
Gosto de gente positiva, de gente criativa… Gosto de artistas e de sonhadores, de idealistas e de visionários. Não acredito em estereótipos. Por isso valorizo, naturalmente, a coragem da diferença.
Detesto a falta de profissionalismo. Dar o exemplo é, para mim, sempre a melhor regra.
Quando era menina acreditava que, no futuro, iria ser capaz de criar uma sociedade em que todos fossemos irmãos. Não fui capaz, mas ainda persigo o sonho!…

Para poder fazer o doutoramento, em egiptologia, em 1995, foi para Paris, durante dois anos, estudar com o Prof. Pascal Vernus, na École Pratique des Hautes- Études. Durante esse tempo só viu a família e os filhos de 10 e 13 anos, nas férias do Natal e no verão. Como foi essa situação?
Essa foi uma das situações mais difíceis da minha vida, mas eu não tinha opção. Para ser egiptóloga, eu precisava de obter competências, nomeadamente, no campo da língua, que passavam por aquela aprendizagem e pela proximidade de mestres e de bibliotecas especializadas. Fui e fiz aquilo que faço sempre em situações semelhantes. Mergulhei no trabalho. O trabalho é sempre a melhor terapia. E quando estudamos durante 12 ou 14 horas por dia ficamos com pouco tempo para pensar. Quando eu pensava, chorava, com saudades… E rapidamente retomava o trabalho a fim de espantar as tristezas… Paris tornou-me ainda mais forte… e fez-me perceber que não há sonhos impossíveis.

A que se deve o seu gosto pelo Egipto antigo?
Eu tive uma educação protestante a partir dos 11 anos de idade e essa educação privilegia um contacto muito grande e regular com o texto bíblico e, através dele, com as civilizações da Antiguidade. Por isso, quando defini a minha opção em termos de curso – História – eu já sabia que o meu principal interesse na História se centrava na Antiguidade, nesse período onde tudo começa, onde se desenham as grandes civilizações que, posteriormente, irão dar corpo à Europa, por exemplo.
Quando comecei a estudar o Egipto Antigo, o Egipto dos faraós, percebi imediatamente que aquele era o meu mundo. Houve uma espécie de reconhecimento. Como se eu tivesse encontrado, finalmente, a minha gente… com a sua forma particular e especial de sentir o mundo, a natureza e a história. A civilização egípcia é fascinante para qualquer pessoa, no domínio artístico, no domínio religioso… mas a mim, aquilo que imediatamente me prendeu foi a sua sabedoria.

Para fazer o seu trabalho de investigação teve que se deslocar ao Egipto e passava entre 2 a 3 meses de cada vez.  Onde ficava? Fale-nos um pouco da sua vivência com a população e com a família que vos acolhia.
Quando, em 2000, eu parti para o Egipto, fixei-me em Sakara, no deserto. Aluguei dois andares numa casa de família egípcia, mobilei-os, espartanamente…  e ali vivi durante os 10 anos da nossa permanência.
A família em questão era uma família tipicamente egípcia ou seja uma família alargada, constituída por avós, filhos, netos, num total de mais de 20 pessoas. Eu e a minha equipa passámos a fazer parte desta família. Compartilhávamos a mesma casa, virada para as dunas do deserto, o mesmo quotidiano – fora das horas de trabalho – e, naturalmente, fomos partilhando experiências, ideias, saberes. Eu aprendi muito com a minha família egípcia… Devo-lhes alguns dos dias mais sublimes da minha vida…
Sabe, eu, como quase todos os portugueses, tenho uma costela judia. Tenho família judaica, aprendi hebraico. “De sangue”, sou judia… mas o meu coração é árabe… E isso foi o Egipto e aquela família maravilhosa que me deu. Gaza, hoje, é um campo de batalha onde “uma parte do meu corpo ofende a outra”. É tão doloroso e também tão complexo…
Passar esse tempo todo no deserto não é fácil.

Como era o vosso dia a dia?
O nosso dia a dia era pautado pelo ciclo da natureza. Acordávamos por volta das 5,30h da manhã, tomávamos o pequeno almoço, preparávamos as lancheiras e ao nascer do sol – assistíamos diariamente ao nascer do sol – estávamos a partir para Mênfis na nossa carrinha velhinha mas eficiente.
Começávamos o trabalho no campo às 7h da manhã – quando chegávamos os trabalhadores já ali se encontravam bem como o Inspetor – e terminávamos por volta das 13h, mas fazíamos sempre um intervalo para o “fatur” – lanche do meio da manhã – por volta das 10, 30h. Às 13 voltávamos para casa a fim de tomar banho e a seguir almoçar.
A seguir ao almoço, por volta das 14, 30h recomeçávamos o trabalho que havia para fazer em casa: passar desenhos de campo a limpo, preencher fichas, preencher diferentes bases de dados, redigir relatórios, etc… Por volta das 17,30h fazíamos nova pausa – nem sempre – e retomávamos o trabalho até ao jantar, às 20h.
A seguir ao jantar a regra era descontrair um pouco no nosso terraço virado para a duna, alumiados pelas milhares de estrelas que se veem no deserto, conversando sobre o trabalho do dia ou sobre a vida ou sobre qualquer outra coisa.
A hora ideal para deitar era por volta das 21, 30h a fim de dormir as horas necessárias e, no dia seguinte, estar em condições de fazer um bom trabalho. O que acontece, geralmente, é que a maioria dos recém-chegados não se deita a horas e, por isso, ao fim de alguns dias, o estado de exaustão é muito grande.
Nos primeiros anos só descansávamos um dia por semana, à sexta-feira, mas nos dois últimos anos aumentei o descanso para dois dias, sexta e sábado. Deste modo, a equipa tinha um dia para descansar e tratar das suas coisas pessoais e outro para visitar locais arqueológicos relativamente próximos: Giza, Alexandria, Dahshur, o Fayum, Meidum, etc…

Como era a coordenadora do projeto  tinha a dupla tarefa de coordenar o trabalho e a equipa. O que nessas circunstâncias não era nada fácil…
Repare, junta um grupo de 9 ou 10 pessoas, num espaço relativamente pequeno, vivendo em conjunto, durante 24 horas, em condições espartanas, num clima quente e num ritmo intenso e rapidamente se atinge momentos de grande tensão. As pessoas são, naturalmente, todas diferentes, possuem formas de estar distintas e, sob stresse, acontecem mais facilmente situações de tensão. Mas é assim com todas as equipas que trabalham no Egipto, por isso é que existem pessoas que são fixas, em todas as equipas, e outras que mudam todos os anos. Gerir pessoas é sempre mais difícil do que gerir um projeto… mas é assim… não há volta a dar…

O que é que aprendeu com todas estas experiências de vida? E planos para o futuro?
Olhe, aprendi que o tempo, por exemplo, tem várias velocidades, diferentes ritmos, numa mesma duração…
Reforcei a ideia, que já tinha, de que todos nós pertencemos a um espaço em que nos reconhecemos. Eu reconheço-me no deserto. A maioria das pessoas “sufoca” no deserto…
Aprendi, ainda, que a felicidade é um valor sempre muito relativo, muito imediato e muito efémero, quando se busca exteriormente.
Também fortaleci a perceção de que não é preciso muita coisa para atingir esses momentos fulgurantes de grande felicidade. Eu fui muito feliz, no Egipto. Assistia diariamente ao nascer do sol da varanda virada para a duna na minha casa em Sakara… Ao entardecer descia e brincava com as crianças, no jardim ou bebia um chá com as mulheres, sentada sobre uma esteira junto à entrada da casa, no deserto. Conversávamos e ríamos… trocávamos experiências. Muitas vezes subi a duna para ver o sol tombar no horizonte. Isto é a minha ideia de felicidade, entende? Planos para o futuro? Voltar ao Egipto, claro, logo que possível, mas agora, provavelmente, preparando o caminho para alguém mais jovem liderar o projeto.

Em relação ao Parque das Nações gostava de partilhar algo connosco?
Eu gosto muito de viver aqui. Tem o rio. E o rio transmite serenidade…
Depois, o Parque não é claustrofóbico, bem pelo contrário, é muito aberto… e é vivo! No Parque as pessoas andam na rua. Correm, andam de bicicleta, de patins, de skate…
Aqui há tudo – ginásios, escolas, supermercados, farmácias, bancos, restaurantes, cabeleireiros.  Até um nascer do sol lindo, que posso ver do 14º andar da janela de minha casa…[sorrisos]….